O QUE O CRÍQUETE PODE NOS DIZER DO IMPÉRIO BRITÂNICO E COLONIALISMO

O QUE O CRÍQUETE PODE NOS DIZER DO IMPÉRIO BRITÂNICO E COLONIALISMO

Certamente um dos elos mais poderosos que mantêm nosso Império unido […] uma das grandes contribuições que o povo britânico fez à humanidade

(RANJITSINHJI, 1897)

Como em qualquer esporte, ao se olhar para o críquete são trazidas diversas questões sobre história, política e identidade. Ainda que o Brasil participe do Conselho Internacional de Críquete (ICC) – como membro associado –, o esporte não é muito conhecido no país, contudo, isso é diferente nos países ex-colônia britânica. Desse modo, ainda que nem todo país que tenha feito parte do Império Britânico seja membro pleno da organização, todos os 12 países que ocupam essa posição foram colônias da Inglaterra, como podemos ver na comparação de mapas abaixo (ICC, 2024).

Mapa dos países membros do ICC (2024)

FONTE: Elaboração nossa no mapchart.net  a partir dos dados dispostos pelo International Cricket Council (2024)

Mapa dos países componentes do Império Britânico em 1919

FONTE: Elaboração Alan Taylor (2015)

Como demostrado com os mapas, constata-se a correspondência entre os países membros plenos – sendo esses Afeganistão, África do Sul, Antilhas Britânicas, Austrália, Bangladesh, Índia, Inglaterra e Gales, Irlanda, Nova Zelândia, Paquistão, Sri Lanka e Zimbábue – e os países componentes do Império Britânico.

ENTENDENDO O CRÍQUETE E SUA EXPANSÃO

O esporte, inicialmente, não surge com o prestígio que adquire a partir do século XIX, associado a violência, jogatina e ociosidade. Todavia, o jogo é adotado pela recém-fortalecida classe média inglesa e se torna parte do emergente “caráter inglês”. O críquete então se torna vitrine do que seria o inglês, carregando em si o que era considerado como moralidade e civilidade, apresentando o jogador de críquete como um verdadeiro cavalheiro com atributos de paciência, coragem e abnegação. Com os reflexos da Revolução Industrial e urbanização, a prática do esporte era vista como uma maneira de manter os valores espirituais e da vida rural (Bateman, 2009).

Após a Primeira Guerra Mundial, em um contexto de diversas mudanças, assim como crise econômica, enfraquecimento imperial e ameaças do comunismo e fascismo, o jogo servia como um legado do próspero passado. O esporte passou a simbolizar toda essa identidade nacional e imperial que estava sendo ameaçada. Contudo, com o fim da Segunda Guerra Mundial, passam a ocorrer novas reivindicações dentro do críquete e emergem narrativas anti e pós-coloniais no esporte, contrapondo o discurso de inglesidade do críquete (Bateman, 2009).

O ESPORTE E O COLONIALISMO

Com a expansão ultramarina britânica, além de opressão e exploração, os ingleses também implementaram mudanças culturais nos países em que se estabeleceram, e o críquete fez parte desse processo. Inicialmente, o esporte era jogado como uma maneira dos militares ingleses aliviarem o tédio e se integrarem nesse novo ambiente longe de seus locais de origem, assim, por não ter sido algo realizado de forma centralizada e consciente, se expandiu de forma desigual pelos territórios do império. Todavia, posteriormente passou também a ser associado a um veículo de transmissão dos ideais e identidade do império, inclusive utilizando discursos sobre como o nobre esporte serviria para levar ordem ao caos que regia as colônias (Vahed; Padayachee, 2009).

Os jogos realizados na colônia eram utilizados para exibir a bandeira inglesa nos novos territórios, reafirmando os laços dos britânicos com seu país de origem e relembrando os colonos de sua posição. Tendo em vista que a divisão da África realizada pelos europeus não considerou as divisões sociais, políticas e étnicas já presentes no continente, os territórios coloniais não apresentavam grande coesão interna. Assim, alguns colonos, como na África do Sul, entendiam as turnês inglesas como algo para intensificar a solidariedade da sociedade colonial e então forjar uma identidade nacional local (Hall; Parry; Winch, 2009). Nesse contexto, emergem os times locais de críquete, que por sua vez eram vistos como menos elegantes e eram esperados de perder, o que de fato acontecia na maioria das vezes. Quando ganhavam, se enfatizava como a pureza racial anglo-saxã sobrevivia até mesmo em suas colônias mais distantes (Bateman, 2009; Hall; Parry; Winch, 2009).

RACISMO E XENOFOBIA NAS COLÔNIAS POR MEIO DO ESPORTE

O ambiente do esporte se consolida refletindo a sociedade britânica da época, assim o críquete, que para o ideário inglês era composto pela moralidade e cavalheirismo, trazia intrínseco o racismo, perpetuando visões de estereótipo e etnocentrismo. Isso é evidente desde a primeira turnê colonial de críquete, realizada por um time aborígene australiano, em que os jornais ingleses falavam que eles estariam até se assemelhando a cavalheiros, implicando que esse esporte poderia civilizar seus colonizados mais primitivos. Mesmo que posteriormente, em diversas competições, os australianos tenham ganhado do time inglês, ainda se mantinha o argumento na metrópole de que os australianos eram amadores. Ao trazer outros estilos de jogo, afirmava-se que deformavam tanto o críquete que poderia ser considerado outro esporte e a diferença de desempenho era uma perturbação para o imaginário inglês (Bateman, 2009).

Na Índia e Antilhas Britânicas, havia uma exclusão de pessoas não-brancas na prática do esporte, e ainda que após tenha ocorrido uma liberalização maior, isso ocorreu de forma gradual e com acesso controlado. Desse modo, o críquete foi implementado nas escolas de elite indianas visando manter a hegemonia ideológica britânica, trazendo valores de hierarquização, presentes tanto no esporte como na colonização. O críquete passa a ser tido como uma estratégia de aproximar colonizado e colono com objetivo de diminuírem os atritos nessa relação (Bateman, 2009; Vahed; Padayachee, 2009). Nesse contexto, surge a figura do príncipe Ranjitsinhji, um grande jogador de críquete indiano, que mesmo ao adotar o nome inglês foi barrado por dois anos de entrar no time de Cambridge tendo em vista sua origem étnica. Quando consegue entrar no críquete inglês, isso é visto de maneiras contraditórias: por mais que fosse um grande talento, era novamente trazido o argumento que seu estilo de jogo deturparia as normas inglesas do esporte. Posteriormente, com a emergência de um sentimento de nacionalismo na Índia, a popularização do esporte passou a ser vista por alguns setores da população como subserviência ao colonizador (Bateman, 2009). 

Já nas Antilhas Britânicas, local de maioria étnica preta, observava-se que os times ainda assim tentavam manter o papel do capitão de equipe com alguém branco, contudo, no período entre guerras com o enfraquecimento no Império e emergência do sentimento nacionalista, se tornou cada vez mais difícil manter isso. Na Inglaterra, o discurso racista empregado com relação ao time desse país estava relacionado ao paternalismo, sendo retratados como inferiores que deveriam ser educados pelos ingleses. Os jornais comumente atribuíam características infantilizadas aos jogadores e viam seus jogos como guiados pela impulsividade de uma criança, realizando isso por meio também de ilustrações e charges (Bateman, 2009).

FONTE: (Bateman, 2009, p. 159)

As conquistas realizadas no esporte por pessoas não-brancas passavam pela tentativa de descredibilização por meio de discursos racistas. Quando esses jogadores faziam um bom arremesso era devido à genética de bons braços derivada de sua etnia, e nunca como fruto de um pensamento estratégico ou treino e dedicação. Ademais, dentro dos times, as diversas posições têm uma relação hierárquica entre si, sendo essas em ordem de mais para menos importante: capitão, guarda-postigo, lançadores e batedores. E, refletindo os conceitos hierárquicos racistas, geralmente as posições tidas como mais importantes eram reservadas a jogadores brancos, enquanto as outras, que exigem mais esforço físico, ficavam para os jogadores não-brancos. Outro aspecto é que o próprio acesso a clubes de críquete refletia os ideais colonialistas de segregação, perpassando questões sociais, raciais e de classe (BBC, 2019; Searle, 1993).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O críquete é exportado e se enraíza nas colônias britânicas, sendo a simbolização da expansão cultural e imperial britânica e se torna um dos responsáveis pelo sucesso da missão civilizatória, principalmente na Índia e nas Antilhas Britânicas. O esporte se estabelece como o esporte nacional inglês, mas também como símbolo da força e unidade do império. Todavia, o críquete, por meio de suas normas e regras, trazia implícito também a perpetuação das estruturas sociais opressivas coloniais. Era muito presente discursos e ideias derivados do darwinismo social, visando a manutenção da pureza anglo-saxão e medo da degeneração racial (Sorger, 2023).

Contudo, o esporte também se torna parte dos projetos de emancipação das colônias, o que é visto até mesmo nos modos diferentes de se jogar derivados das colônias. Ainda que a diferença estética no jogo entre os ingleses e não-brancos fossem um aspecto em que se reforçavam o discurso racista, com o tempo essas diferenças foram ressignificadas pelas colônias. Um exemplo explicito é o caso Antilhas Britânicas, que transformaram o críquete em um símbolo de luta nacionalista e anticolonial. O estilo caribenho passa a ser compreendido pelo país como superior ao original inglês, que era visto como muito estagnado. A partir disso, essa estética de jogo é fortalecida, e assim como os ritmos caribenhos, são exportados para a metrópole como novos modelos levados às tradições culturais inglesas (Bateman, 2009).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATEMAN, Anthony. Cricket, Literature and Culture: Symbolising the Nation, Destabilising Empire. Ashgate, 2009. 

BBC. Learie Constantine – fighting racism in UK. BBC, 2019. Disponível em: https://www.bbc.co.uk/programmes/w3csywy0. Acesso em: 28 mar. 2024. 

HALL, Bernard; PARRY, Richard; WINCH, Jonty. More than a Game. In: MURRAY, Bruce; VAHED, Goolam (ed.). Empire & Cricket: the South African experience 1884-1914. Unisa Press, 2009.

ICC. About ICC. 2024. Disponível em: https://www.icc-cricket.com/about/index. Acesso em: 30 mar. 2024.

SEARLE, Chris. Cricket and the mirror of racism. Race & Class, v. 34, n. 3, 1993. DOI: https://doi.org/10.1177/030639689303400304.

SORGER, Andreas-Johann. Cricket and Colonialism: Towards a political theory of sport. European Journal of Political Theory, 2023. DOI: 

https://doi.org/10.1177/14748851231210799. Disponível em: 

https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/14748851231210799. Acesso em: 28 mar. 2024.
VAHED, Goolam; PADAYACHEE, Vishnu. Empire, Race and Indian Cricket in Natal, 1880-1914. In: MURRAY, Bruce; VAHED, Goolam (ed.). Empire & Cricket: the South African experience 1884-1914. Unisa Press, 2009.

Laryssa Tomaz de Frias Marques de Souza

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