RUPTURA DEMOCRÁTICA: AS MANIFESTAÇÕES EM 2019 NO CHILE

RUPTURA DEMOCRÁTICA: AS MANIFESTAÇÕES EM 2019 NO CHILE
Bandeira chilena erguida em comício (Foto: Hugo Fuentes/Canva)

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo analisar a conjuntura atual do Chile e as manifestações a favor da mudança em sua constituição, levando em consideração o quadro panorâmico histórico do final da ditadura de Pinochet e a construção da Carta Magna do país vigente até o ano de 2019. Nesse sentido, foi possível fazer uma cobertura histórica e construtiva da política e das estratégias políticas que levaram à constituição chilena, à transição democrática conturbada no país e a algumas controvérsias intelectuais apresentadas por Alberto Aggio e Gonzalo Cáceres Quiero. Em sequência, realiza-se um estudo sobre os movimentos sociais chilenos em geral, suas manifestações e vias, suas aplicações nos movimentos e organizações sociais e suas reivindicações a partir de Fernando de La Cuadra; e, por fim, o percurso para uma nova constituinte no Chile. 

QUADRO PANORÂMICO HISTÓRICO

O regime militar chileno de 1973, após a queda do governo democrático de Salvador Allende, foi determinado por três características descritas pelos autores Aggio e Quiero (2000). Em primeiro lugar, há a personalização do poder na figura de Augusto Pinochet, característica essa que lhe garantiu legitimidade interna, hierárquico-institucional, o que lhe assegurava o controle completo sobre o Exército chileno. Em segundo lugar, há a capacidade transformadora, inspirada na alegação neoliberal ortodoxa e em terceiro lugar o projeto de Pinochet de institucionalização política, autenticando a situação de um regime militar para o autoritário.

Essa capacidade transformadora do regime, estabelecida pela aliança entre militares, neoliberais e neoconservadores, mostrou-se o pilar básico do que no final da década de setenta pode ser chamado de “modelo chileno”. Esse conceito era determinado por uma política econômica neoliberal, em um Estado que utilizava de sua legitimidade para exercer um “terrorismo” em massa e através de instituições conservadoras dispostas a manter uma democracia mínima ou restrita1. É possível ilustrá-lo a partir da dissidência enfrentada em 1983 por manifestações populares contra uma ditadura debilitada economicamente.

De acordo com Zibechi (2023),

“O centro do movimento social chileno passou das fábricas para as cidades, que desde 1983 protagonizaram a resistência à ditadura em jornadas memoráveis de protesto. Com isso, expandiram-se práticas coletivas de sobrevivência, panelas comuns, que mais tarde seriam teorizadas como “economia solidária”. O movimento urbano passou da resistência à insurreição.”

Sendo assim, no início de 1983 foi realizado o primeiro protesto na capital chilena, onde foram erguidas barricadas, houveram confrontos com a polícia e várias fatalidades. A polícia invadiu mais de 5.000 casas e prenderam várias pessoas acima dos 14 anos (Zibechi, 2023). Depois desse primeiro protesto, houveram várias manifestações de descontentamento ao governo de Pinochet durante os dois anos seguintes, com represália violenta (Zibechi, 2023).

Apesar desses momentos conturbados, Pinochet foi capaz de administrar todas essas situações com maestria por meio de supostas negociações cívico-militares, isentando-se no itinerário legal criado pelo regime. O processo seguiria as seguintes premissas: inscrição nos novos registros eleitorais, formação de partidos políticos, aceitação de um sistema binomial majoritário, consumação do plebiscito sucessório em 1988 e realização de eleições parlamentares. No entanto, era notável que seria impossível derrubar Pinochet por meio de lutas sociais, porém o insucesso dessa estratégia não significou falha total da oposição moderada. Ainda assim, foi possível notar a crescente mobilização popular contra a ordem autoritária.

O Chile, no que tange à transição democrática, apresentava características particulares como: a não herança da crise econômica do regime anterior, já que o neoliberalismo foi imposto durante o regime; a maioria do bloco da oposição à ditadura se conformar em coalizões de partidos, ao início da fase democrática; e, contradizendo as questões anteriores, a profundidade e extensão dos enclaves autoritários, estabelecendo no país uma convivência da transição à democracia incompleta em conjunto com um regime novo e mais consolidado. 

Seguindo essa linha de raciocínio para o dilema atual da democracia chilena, é de ímpar importância explicitar o que Aggio e Quiero (2000) chamam de tecnocracia governamental concertacionista, sendo esse conceito determinado pelo modo como os acadêmicos trataram a democracia pós-ditadura. Os autores enfatizam que a transição da democracia chilena foi “pactuada, institucional e despolitizante” (Aggio; Quiero, 2000), inclusive nas concepções dadas pelos cientistas sociais e políticos da época, dando ênfase a Lagos e Garretón, que por não concordar com a linha de pensamento do Realpolitik2 foram marginalizados das decisões e de opiniões sobre o Estado democrático chileno. 

Entretanto, após um longo período de dupla transição (1990-1997), economia de mercado e da democracia, em 1998, a crise asiática produziu efeitos contundentes no Estado chileno. Essa crise econômica, somada à falta de bem-estar social para a população e a polarização devido à detenção de Pinochet, provocou uma grande mobilização social e jurídica, devido aos crimes contra os direitos humanos cometidos durante o governo do ditador. 

“Manifestação de familiares de presos políticos desaparecidos durante a ditadura militar no Chile, 2019” (Fotos Públicas)

AS PRINCIPAIS FORMAS E EXPRESSÕES DO CONFLITO SOCIAL NO CHILE

Diante do histórico político chileno, foi-se criando um conjunto de fatores que acabaram por gerar um desconforto geracional no país. Trazendo um pouco para atualidade, esse desconforto foi amplificado depois da eleição de Sebastian Piñera (2018-2022), uma vez que, por se tratar de um grande empresário, gerou alegações de conflito de interesses na sua gestão. Desse modo, as manifestações de 2019 e descontentamentos com o regime democrático chileno resvalaram no governo de Piñera devido às já existentes insatisfações das massas do país, de trabalhadores até estudantes com a qualidade da educação pública. A princípio demandando apenas questões setoriais, mas que se transformaram em um movimento nacional questionando as bases dos modelos econômicos e sociais do Chile. 

Para além das críticas em relação à falta de vocação para o cargo de Presidente, aliadas à carência de tato para lidar com as turbulências, o governo de Piñera oscilou entre o diálogo com os movimentos populares e a desqualificação deles, desprezando sua importância. Por vezes, assumiu-se tom agressivo e aplicou-se atos violentos sem precedentes, provocando conflitos entre as forças de Estado e a população chilena. Posteriormente, contudo, renovou-se  negociações, trazendo aspectos e promessas como a melhoria da qualidade de ensino, o que não foi posto em prática pelo regime Piñera. 2011 e 2013 foram os anos do auge das manifestações, com milhares de pessoas protestando tanto em Santiago e nas principais cidades do país,contra a mercantilização da educação e outros movimentos somando suas reivindicações com os movimentos estudantis. 

De acordo com La Cuadra (2013), existe uma corrente de pensamento que transmite dois vieses: o primeiro afirma que a estrutura se define dependendo da interação entre os atores; e o segundo, por sua vez, defende que essas oportunidades fazem parte da estrutura do Estado e é o que define o grau de abertura das estruturas, sendo assim elas afetam as estratégias dos movimentos sociais a longo prazo e a curto prazo, respectivamente. Dessa forma, os movimentos sociais sofrem o impacto das oportunidades que são apresentadas pela estrutura do Estado tendo fator importante as alianças políticas estratégicas, especialmente à partidos políticos. 

Bem como, é necessário destacar que essa relação é essencialmente conflituosa, já que os movimentos sociais são a base da oposição ao status quo. Após a “crise da política” e a desconfiança geral nas instituições, os movimentos sociais buscam operar autonomamente tendo, muitas vezes, caráter anti-partidos e antipolítica. No entanto, os movimentos sociais agem de forma política, a fim de causar mudanças no âmbito político. Sendo assim, os movimentos sociais participativos das manifestações/protestos no Chile têm essa característica autônoma, com a intenção de se desvencilhar das instituições e de um status quo no qual ele mesmo participa, a fim de ter mais apoio popular para pressionar as autoridades, nesse caso, Sebastian Piñera. 

Os movimentos sociais no Chile, atualmente, advém de uma vertente a fim de aumentar a participação popular no ambiente político nas questões, especialmente, sociais, como: educação, saúde, habitação, política laboral, direitos humanos, previdência, entre outros, somado aos partidos de esquerda, promovendo táticas e estratégia a partir de diversos campos (La Cuadra, 2013). Nesse quadro estão levantando-se várias questões para o desenvolvimento de uma alternativa ao modelo atual do país, convocando uma Assembleia Constituinte para elaborar uma nova Carta Magna com o objetivo de incluir e consagrar o protagonismo multicultural e a diversidade da população chilena, assim como “o direito das pessoas à autodeterminação de seus projetos de vida e à iniciativa popular (como instâncias plebiscitárias) para discussão e promulgação das leis da República” (La Cuadra, 2013, p. 598).

Desde as manifestações de 2019, foram apresentadas duas novas Constituições para votação da população e as duas sofreram rejeição pela maioria. Segundo a BBC (2023), o presidente Boric, diante da falha na formulação e aprovação da constituição no final de 2023, apontou que o Chile deveria ter outras prioridades no momento, já que o país passa por uma crise econômica, social e política. Destarte, é importante os líderes e/ou representantes estarem atentos às possíveis manipulações e a possíveis alianças no processo de mudanças da Carta Magna para que a população obtenha sucesso em suas reivindicações e a conclusão da transição democrática do Chile seja possível.

Gabriel Boric em entrevista (Foto: Fotos Públicas)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dinâmica dos movimentos sociais foi implacável em sua organização a fim de buscar bem-estar social e ampliação da participação política da população, abrangendo o círculo com a pluralidade do país, em decisões e reformulações de projetos. Com a tentativa do governo de deslegitimar os protestos, eles conseguiram a adesão de centenas de milhares de pessoas às ondas de protestos. Entretanto, mesmo sendo a mais aceita, a escolha reformista de negociação, assim como a sua autonomia em relação aos partidos políticos, pode acarretar em riscos profundos em suas reivindicações através de manipulações por setores do Estado com o objetivo de manter o status quo

REFERÊNCIAS

AGGIO, Alberto; QUIERO, Gonzalo Cáceres. Chile: processo democrático e controvérsias intelectuais. Lua Nova, n°49. 2000. 

CHILE rejeita projeto de constituição liderado pela direita. BBC News. 17 de dez. 2023. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1mezr30eyo. Acesso: 22 set. 2024.

LA CUADRA, Fernando de. Apontamentos sobre o conflito e os movimentos sociais no Chile. DILEMA: Revista de Estudos de Conflito e Controle social, volume 6, n°4,  p. 581-602, 2013. Manifestação em Santiago no Chile reúne centenas de milhares. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7437/5980. Acesso em: 27 jan. 2021. 

NETO, Antônio Cabral. Democracia: velhas e novas controvérsias. Estudos de Psicologia (Natal). p. 287-312.1997. Disponível em: https://www.scielo.br/j/epsic/a/mggTDX8wXtRq5X5mKLkKBwb/.  Acesso: 22 set. 2024.

GLOSSÁRIO de Relações Internacionais: Realpolitik. Revista de Relações Exteriores. 23 fev. 2023. Disponível em: https://relacoesexteriores.com.br/glossario/realpolitik/. Acesso em: 22 set. 2024.

ZIBECHI, Raúl. Meio Século de Golpe no Chile. Instituto Humanitas Unidas. 12 set. 2023. Disponível em: https://ihu.unisinos.br/categorias/632253-meio-seculo-do-golpe-no-chile-artigo-de-raul-zibechi. Acesso em: 05 out. 2024.

  1. O termo é utilizado para caracterizar uma democracia à qual existem as eleições como característica primeira, no entanto a participação política é limitada a um grupo específico, como por exemplo na Grécia Antiga. (Neto, 1997) ↩︎
  2. ‘Realpolitik’ é uma abordagem de política externa centrada no pragmatismo e no interesse próprio, priorizando considerações práticas e estratégicas sobre ideais ou considerações morais. O termo, originário do alemão, significa “política realista” e é caracterizado pelo exercício do poder e pela diplomacia baseada no cálculo dos interesses nacionais, muitas vezes utilizando a coerção ou a força como meios legítimos para alcançar objetivos estratégicos.” (Glossário de Relações Internacionais, 2023) ↩︎

Victória Catarina Nascimento

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